|
u
pensei em começar esta parte falando unicamente de meu trabalho,
estabelecendo por assim dizer, uma espécie de modo de uso
ou grossário sobre ele, mas me pareceu mais sensato falar
também de algumas das idéias que tenho do mundo, principalmente
para que aqueles que desejam compreender minhas obras, possam também
entender uma parte do conceito que inspira suas realizações.
Através
dos séculos e em todas as civilizações, sem
distinção de raça ou credo, escribas e copistas,
silenciosos e atentivos, com mãos habéis, fiéis
e pacientes, nos trasmitem com seus instrumentos de caligrafia:
textos sagrados, fatos históricos, estórias de amor
e de poesia, lendas inesquecíveis, tratados de paz, ciência
e leis. Estes são os pilares do conhecimento humano, chaves
de acesso ao entendimento para compreender nossa existência,
para com um olhar atentivo diante de belos manuscritos do passado,
possamos preparar o amanhã ou penetrar num mundo de sonhos...
ainda que por instantes.
Foi
com esse tipo de reflexão, que um dia, enquanto contemplava
alguns destes manuscritos, anos atrás, eu decidí iniciar
a viagem de retorno (e sem retorno) que realizo hoje, entre o real
e o imaginário, através do conhecimento humano em
todas as suas épocas; reescrevendo o que já foi escrito;
retraçando idéias passadas mas marcantes para mim;
repensando o já pensado; procurando ressentir em meu ser
as mesmas sensações que os homens antes de mim sentiram,
mesmo que o faça de maneira quase nostálgica. Cruzando
textos inteiros, dezenas deles como se não houvesse fim,
me enveredando por entre frases, às vezes sem um sentido
imediato no instante, mas que após uma reflexão profunda,
me deparo com uma sabedoria superior, me fazendo sentir como uma
criança, sedenta por saber.
E
como tenho minhas dúvidas acerca de tudo na vida, inclusive
de mim mesmo e de até onde posso ir; como me considero curioso
em entender o desconhecido para descobrir as outras versões
de nossa existência; como sou interessado em conhecer os outros
lados da mesma questão, os segredos desta vida;
eu mergulho no passado através dos manuscritos, dos livros,
procurando desvendar tudo através deles, todos os detalhes;
recopiando as questões, os enigmas, as respostas; transcrevendo
os pensamentos de outros mais audaciosos que eu. E como não
sei se terei muitos anos de vida diante de mim - pois acredito que
quando não pensamos na morte, somos irresponsáveis
com a vida, deixando de realizar projetos dignos de nossa passagem
neste planeta -, ocupo meus dias debruçado sobre os livros,
com seus textos muitas vezes longos mas envolventes; sim, mergulhado
sobre eles de maneira intensa, atentiva e interessada. Eu os fixo
com meus olhos, sem pressa: contexto por contexto, linha por linha;
eu me alimento pouco a pouco da sabedoria que eles me transmitem;
eu os absorvo procurando assim sentir a essência destas épocas
e de suas idéias; procurando aplicar alguns dos ensinamentos
passados à realidade do meu hoje, de meu tempo. Ou com minha
imaginação, transporto-me para lá, para após
representar estas idéias através de minhas obras.
Ah!
todos estes manuscritos ainda hoje preservados, textos que se transformaram
em chaves; chaves que são grandes mistérios; mistérios
que se revelam quando nos aprofundamos através deles; verdadeiras
cartas abertas e expostas hoje a todos nós; que guardam grandes
estórias.
Tudo
isso me fascina, me envolve corpo inteiro, alma inteira, meu tempo
inteiro. Todos estes textos, belos textos. Eu os procuro, fascinado,
por todos os lugares onde eles ainda teem seu espaço, eu
os admiro, os transcrevo com respeito, dando a eles o valor que
posso dá-los. Eu os transcrevo: em francês, em latim,
em português, em inglês, em hebreu, em... comparando-os;
tentando nas reflexões me colocar ao lado de seus autores
para entender sua elaboração; faço isso sem
me preocupar com a hora, como se o tempo fosse minha habitação,
meu único lugar de inspiração. Eu os estimo
como a um grande tesouro, meu tesouro, fazendo deles meu esconderijo
secreto.
E
após terminado meu estudo, eu traço num papel o lugar
onde receberá o texto escolhido, tão apreciado, a
ser reproduzido por mim. Eu imagino o texto terminado, bem aconchegado,
às vezes iluminado, futuramente admirado. E é assim
que inicio sua transcrição em meio a gestos simples
e comprometidos, por sobre o suporte, com minha pluma, na letra
que eu imagino para ele. Mas que letra eu escolho à cada
transcrição caligráfica? Escolho a letra que
atende ao meu estado de espírito do momento, a letra certa,
no tamanho certo; a letra que me fala à medida que minhas
mãos recopiam palavras, frases inteiras. Numa atitude espiritual
para mim.
Creio
no espírito e no espiritual!
Minha
criação é um estado de espírito!. Sim,
meu trabalho é conceitual, espiritual, intelectual; às
vezes sensual, poético, e na maioria das vezes pleno de contrastes.
Insignificante para alguns e interessante para outros. Para mim
no entanto, ele é meu eu, minha melhor forma de expressão,
minha sensibilidade em erupção, minhas idéias
em marcha. Ele é meu íntimo desnudado, a forma que
procuro dar a vida, ao belo do feminino, à minhas poesias.
O resto é meu estudo prático do mundo, sobre meus
erros e acertos, sobre meu conhecimento adquirido através
da cultura humana.
Eu
sou um leitor compulsivo, um apaixonado por livros, pela história,
por arte, por comunicação, por arqueologia, pelo espiritual...
interessado em entender os fenômenos desta vida. E estes livros
e disciplinas de que falo, fontes de aprendizagem para mim, me acompanham
desde minha mais tenra idade e eles ajudaram-me a solidificar minha
própria idéia da vida: natural e espiritual.
Tenho
uma veneração especial por nossa escrita ocidental
e pelas línguas que ela representa; veneração
pela literatura e pela arte em todas as suas formas, pela ciência
como complemento e não como o centro de todas as respostas,
como tentam alguns fazer-nos isto acreditar em nossos dias.
Mas
não aprendí e aprendo somente com os livros, aprendí
e aprendo também com os demais. Falo daqueles que me querem
bem, ou dos que se interessam por mim, ou dos mais velhos, de todos
os que considero sábios - através de seus conselhos,
pois acredito que conselho é bom, que deve ser dado e que
deve ser aceito; com os dezenas de profissionais que conhecí
e com os que conheço - que dividindo e trocando comigo seu
saber, suas reflexões e suas experiências, contribuiram
e contribuem no meu conhecimento; que me estimularam na pesquisa,
na construção de alguns de meus projetos. Eles me
ajudaram a decidir o que queria realizar na vida de maneira prática
e que me dão hoje autonomia, autoridade e determinação
através das escolhas profissionais que faço para mim.
Aprendi
a sonhar e a desejar vez por outra: um mundo de cultura elevada,
mais humano, mais justo, mais inteligente, mais educado e menos
formalista (não devemos confundir educação
e formalismo)... mesmo quando a ignorância e a má vontade
de alguns tenta me convencer - sem sucesso - de abandonar meus sonhos;
mesmo me sentindo utópico e antiquado... ainda assim eu sonho
e continuo a sonhar mesmo hoje!. Eu continuo a sonhar porque creio
(citando Ariano Suassuna) que a cultura tem anti-corpos.
E
foi quando eu morei numa banlieue parisiense que aprendí
- olhando os pássaros que se pousavam sobre minha janela:
livres, satisfeitos, meus companheiros de cada dia, (uma de minhas
fontes de inspiração) - a voar na imaginação,
a ousar, a me aventurar no mais íntimo de mim mesmo buscando
respostas; a estabelecer meu mundo próprio, a estruturar
e reforçar meu pequeno atelier, tendo como companhia as palavras
que ecoavam no ar daquela primavera; palavras plenas de força,
que enchiam minha alma de propostas, de temas os mais variados,
de reflexões, de teses às vezes até absurdas...
E nestes instantes eu pensava por um momento naqueles pequenos seres
lá fora, que com alegria e engenhosidade preparavam seus
ninhos. Estes eram como momentos mágicos para mim; eu contemplava
aquela cena diante de mim como algo perfeito, como algo de extraordinário,
como um milagre da existência, sem saber se veria outra vez
tal evento, tão fantástico, tão... genial!.
E assim parava meu trabalho e saía um pouco por aí,
caminhando pelas ruas de La Garenne Colombes, de Paris, pelas praças
afora, jardim do Luxembourg; tomando o RER, às vezes o trem
da SNCF; o metrô parisiense; entrando nas filas e corredores
humanos que se formam por todos os lugares (este sofrimento humano
de sempre); na estação Saint Lazare, em Les Halles...
com a mente distante, viajando nas idéias, na minha própria
maneira de ver o mundo; passando despercebido em meio a massa, com
este meu estado de espírito só meu.
Escrever
é deixar uma marca de si mesmo.
Os
textos escritos fixam definitivamente as reflexões do homem,
resultado da organização e associação
das idéias que em si mesmas são um movimento puramente
mental e desassociado da matéria. Assim sendo, transcrevendo
os textos, eu materializo as reflexões humanas. Eu dou um
corpo físico e vísivel a elas. Eu lhes executo na
ambição de fazê-las ultrapassar os limites do
tempo, pois uma obra de arte é feita para durar.
Minhas
obras são apresentadas por mim em material durável
e permanente, e constituem a preservação do conhecimento,
assim como uma imagem ou quadro do discurso falado.
Tenho
um respeito especial pelo Livre-Arbítrio, principalmente
o dos outros, e isto constitue para mim o primeiro de meus mandamentos
na relação humana.
Todos
nós temos direito ao amor, à sexualidade, ao pudor,
à liberdade, à intimidade, ao respeito, a pensar o
que quisermos de tudo e sobre tudo; a nos expressarmos livremente;
a crermos no que queremos crer sem impedimentos, assim como a em
nada crermos de tudo o que os outros nos apresenta; a nos sentirmos
gente, a nos sentirmos desejados, a nosso valor próprio,
a sermos vistos; a sermos conhecidos ou desconhecidos de todos;
direito a nossa timidez; direito a expressar nosso mais íntimo
desejo e a desejarmos o outro que amamos - de corpo e alma - com
o melhor de nós, sem sofrermos julgamentos dos demais por
causa de nossas escolhas. Sim, temos direito a expressarmos tudo
o que se encontra em nosso íntimo; em nosso coração,
em nosso entendimento. Direito a crermos em Deus, como direito a
termos o livre arbítrio de seguir cada um seu caminho como
bem se entende. Direito a sermos cidadãos; a defendermos,
a dependermos e sermos protegidos pelo Estado; e direito a sermos
homens livres nas idéias, pensando diferente dos outros e
deste mesmo Estado, e podermos manisfestar isso abertamente sem
nos sentirmos perseguidos; ou partirmos para outras terras, outras
culturas, onde se defende as mesmas idéias que temos sobre
tudo, sem encontrarmos barreiras em nossa viagem.
E
eu aproveito aqui para denunciar o abandono de nossos fracos que
sem apoio se arruinam; a disputa dos fortes por um mundo que deveria
a todos pertencer; a intolerância e a indiferença de
nossa sociedade como atitude normal nos dias de hoje; a injustiça
com aparência de justiça que destrói a crença
de alguns; sim, eu denuncio esta guerra fria entre pessoas de uma
mesma sociedade, de um mesmo povo, de uma mesma escola, de um mesmo
corpo profissional, de uma mesma família... numa espécie
de concorrência deshumana apressada e devoradora onde cada
um dentre nós quer ultrapassar o outro para adquirir os melhores
lugares em nosso meio, no trabalho, nos cursos, nos grupos, no coração
de nossos próximos... descobrindo no fim de nossas vidas
que chegamos a parte alguma, que nada temos, que somos todos iguais!.
Eu me pergunto, como é que chegamos à este estado?!
Estas coisas me tocam profundamente e afetam minha arte.
Me
realizo no meu trabalho e exteriorizo sobre o suporte tudo o que
meu estado de espírito fornece em meus momentos de inspiração.
Minha caligrafia é meu instrumento de trabalho, e a ela consagro
meu tempo, minha disciplina, meu conhecimento. Através dela
dou forma a tudo que meu espírito entende por ideal e belo;
faço isso dezenas de vezes se for preciso, num ritual incessante,
pois isto me dá prazer, pois isto me realiza, é isto
meu mundo.
Aprendí
a caminhar sozinho, abrindo meu caminho com confiança: em
D.eus, em mim, no meu trabalho e no futuro. Sejamos racionais, ninguém
precisa derrubar a arte dos outros para existir ou atingir seu sucesso
pessoal! pois é o trabalho que nos dá a dignidade
e o reconhecimento merecido nesta curta vida, e além dela.
Eu trabalho duro! Todos os dias! Com disciplina e esperando no tempo,
o resultado de meu trabalho. E quanto a este tempo, o tempo que
ocupa meus dias, eu o uso caligrafiando, realizando minhas obras
em meu atelier, descobrindo novos livros por livrarias afora: em
Paris, em Strasbourg, em Bruxelas... tentando aprender, tentando
entender as verdades dos outros, fazendo às vezes valer as
minhas, pois quem é o que detém a verdade absoluta?
E
para continuar a falar sobre o que o penso de posicionamentos diferentes
dos meus, também creio num mundo onde forças se opõem,
na diversidade cultural entre Oriente e Ocidente - onde as diferenças
reinvidicam com legitimidade seus direitos.
Creio
na atração do claro pelo escuro; na necessidade absoluta
do contraste em tudo, pois esta vida é feita de contrastes;
ela é plena de oposições necessárias.
Creio na diversidade de opiniões e que as diferenças
são importantes para o equilíbrio de nossa sociedade
e para sua sobrevivência. Da mesma forma que a noite e o dia
são essenciais neste mundo onde o claro e escuro coabitam
em equilíbrio. E por isso utilizo nos meus trabalhos o vermelho:
de amores, paixões e vida, ou como representação
de perda, lutas sangrentas e tragédias, em oposição
e equilíbrio com o preto: como marca permanente das idéias
humanas, ou vez por outra dos sentimentos e situações
obscuras.
O
artista é um ser de todos os tempos; se situa em todas as
épocas; é sensível a todas as mudanças
em torno de sí e contempla toda a humanidade.
Pertenço
a meu tempo e tento representar meu trabalho de forma atual, mas
não sou preso a minha época como se estivesse numa
bolha. Ao contrário, desbravo o passado antes de mim pelos
corredores da história, destrinchando realidades que estão
vivas e presentes ainda hoje em nosso meio; modelos e princípios:
políticos, culturais e religiosos, que são humanos
e universais; que fizeram e fazem parte das civilizações
em todos os tempos, pois eles são como espelhos que refletem
uma luz sobre nosso mundo atual, abrindo portas, ajudando-nos a
regular nossa conduta, consolidando nossos valores, estruturando
nossa sociedade; eternizando através de gerações:
conceitos, idéias e fatos. Também tenho meus próprios
conceitos e os exponho em meu trabalho com os materiais de que disponho
hoje, e da forma mais apropriada e coerente a nosso tempo.
Eu
não sei tudo, mas quero tudo saber!
E
como nossa linguagem há necessidade de ser exteriorizada
e fixada; como os gritos de nossa alma assim como nossas idéias
e paixões, precisam serem vistas e contempladas pelo mundo
exterior para satisfação de nosso espírito;
porque não trabalhar os signos que representam e atendem
a este desejo humano normal e justo?. É nisso o que consiste
meu trabalho de pesquisa e transcrição das obras do
passado: eu represento as idéias e aspirações
da alma de seus autores através destes textos considerando
o que nos foi transmitido como algo espiritual, que se comunica
com nosso espírito; identificando na forma corporal dos caracteres
o espírito materializado que conserva em sí mesmo
o son e a força da mensagem guardada, e assim eu revelo com
minha pluma a alma do texto, vivo e falante, móvel e presente,
que comunica à nossa alma o sentido espiritual do que nos
foi legado.
Estes
pequenos signos que mudam o contexto das idéias à
cada vez que se faz necessário; que tocam o fundo de nós
mesmos com mensagens que só o cérebro ou o coração
podem decifrar; juntando-se em grupos, pequenos, grandes, para formarem
sílabas, palavras, frases; transformando-se em idiomas diferentes,
mudando a linguagem, nos revelando segredos, nos orientando e nos
dando direito a uma reflexão profunda de nossos desejos e
da razão de sermos o que somos. Que dão sentido ao
sentimento, ao grito, às lágrimas, ao pranto, à
alegria, ao amor, ao desabafo, ao que é humano, ao que é
legítimo em nós!.
Estas
pequenas letras mágicas plenas de personalidade, individualismo
e força de expressão, que tomando formas diferentes,
sejam em Rústicas, Onciais, Carolinas, Góticas: primitivas,
texturas, rotundas, fraktur, flamandas ou batardas, nos dão
a sensação de vivermos um outro tempo, uma outra época;
de capturar para nós a história, poder dela fazermos
parte. Letras que me fascinam à cada assunto e onde procuro
isolá-las para lhes dá um valor todo especial à
sua individualidade. Eu poderia caligrafiá-las e representá-las
até meu último suspiro de vida. Isto seria um prazer
para mim!.
E
parar continuar a falar de minha caligrafia, deste veículo
que me torna cúmplice da história, ela é a
ferramenta que também utilizo para reafirmar minhas convicções
e crenças; que emprego para exteriorizar e representar meus
conceitos de forma visual e artística; com a ajuda de textos
que eu tenho por excelentes. Ela é o recurso que disponho
e utilizo para dividir com quem gosta de meu trabalho, tudo o que
insisto em descrever. Através de minha caligrafia, eu tenho
a certeza de que meu mundo pode ser dividido, contemplado, admirado
ou criticado.
Em
meu trabalho caligráfico, as letras antigas não são
simples alfabetos perdidos, coisa do passado; peças de museu;
um mero assunto de paleógrafo. Elas têm o valor merecido,
a importância que devem ter.
Com
minha pluma em punho liberando delicadamente a tinta sobre o suporte,
as palavras ressurgem uma-a-uma, lado-a-lado, deixando a imaginação
me ser por limite, a fronteira que me diz onde parar. Mas logo terminado
este trabalho, eu passo à um outro, pois tenho urgência
no instante; neste instante completamente possuído pela inspiração
que toma conta de mim. Tenho necessidade disso, é como respirar
para mim. É um vicio que alimenta minha alma. Tenho necessidade
da urgência do "agora", da inspiração
que exige uma satisfação plena, um resultado; necessidade
desta inspiração que compreende os gemidos mais íntimos
de meu desejo de criar e se apodera de mim; que no silêncio
mais intenso, onde todos dormem, ela me desperta e me apresenta
uma outra versão da mesma idéia, uma outra concepção
da forma a exteriorizar, ou uma simples observação
para denunciar os erros por mim cometidos. Diria ainda que a caligrafia
é o meio pelo qual alguns de meus desejos se exprimem, pois
nela desabafo, expresso, proponho, exponho, indago, questiono, discordo,
concordo... e dezenas de adjetivos misturados a verbos encheriam
páginas inteiras para falar desta arte que tem um espaço
especial em minha vida.
E
para melhor ver uma de minhas obras caligráficas, é
preciso se distanciar do aparente, do hoje, da mecanização
contemporânea de nosso alfabeto. Evitar comparações.
Ver o conjunto, o todo, como uma unidade inseparável, suas
formas, entender o conteúdo de forma espiritual, vê-las
com olhos sensíveis e despreocupados. É preciso se
situar entre o passado e a conservação das idéias,
nem sempre bem apreciadas por esta geração que ama
tudo mudar; que tem obsessão pelo descartável. Para
entender minhas obras, é preciso ter os mesmos valores que
tem as pessoas que não tem o tempo por inimigo... É
preciso amar as letras, a escrita, a pluma, o calame, a história,
o tempo...
Pois,
quando estou inspirado, desconheço meus limites e pleno de
imaginação começo a rabiscar, a traçar
com minha pluma, para me realizar na criação.
Mas
no meu trabalho eu não só invoco textos; história
e literatura; lendas e fatos; crenças e manisfestos... No
meu trabalho tenho também um espaço reservado à
representação do corpo, em especial o corpo feminino
com suas curvas perfeitas e belas, como uma das formas de beleza
do espírito humano. E porque eu não lembraria da mulher
em meus trabalhos? Desse ser que muda o curso da história
quando quer? Que com gestos tenros, delicados, plenos de graça
e sedução, faz este mundo mais perfumado; da beleza
algo essencial; dos homens embaixadores de paz ou conquistadores
implacáveis. Represento elas em meus trabalhos com a mesma
emoção que me causam os outros temas que me inspiram.
Transcrevo sobre o suporte seus gestos encantadores, femininos e
majestosos que só a elas foi dado o direito de possuir. Com
a originalidade feminina que os outros seres são privados
de ter. Mulheres sem rostos, sem condição social,
sem nível de estudo, sem profissão...sem nada disso
como algo de importante. Imaginárias, sensuais, belas para
mim; gordas, magras, altas, baixas. Elas estão em minhas
criações como representação do belo,
como exteriorização do lado fascinante do espírito
humano, como motor de inspiração para aqueles que
desejam o amor, porque sem esta imagem de mulher, assim, consciente
do poder que ela libera, não pode existir amor, poesia, desejo,
conquista, encantamento, romance, sentido e razão na vida
de um homem. É disso que falam também as poesias que
escrevo e que as acompanham.
Meu
amor pelas grandes idéias; pelos ideais; pela mulher; pela
sensualidade; pelos contrastes; pelo que é manual; pelo intelecto;
pelo ser humano; pelo que é legítimo e justo; pelas
paixões ardentes; pela oposição positiva; por
um mundo melhor. São estas as matérias-primas de onde
extraío o conteúdo necessário para dar forma
ao que pretendo mostrar através da representação
conceitual que significa meu trabalho.
Esta
arte que me é como um veículo por onde conduzo minhas
idéias, por onde deixo fluir minha inspiração,
meu interior às vezes inquieto, melancólico, esperançoso,
contraditório, apaixonado, amante, firme, rigoroso, pecador,
curioso, admirador. Por onde exprimo os meus sentimentos em relação
a representação do mundo exterior em torno de mim,
diante de mim. Esta arte por onde com a mão firme e livre
dou a forma que quero a mulher ou assunto que contemplo e admiro;
através do traço, através das cores.
E
não poderia finalizar sem antes falar da pluma paciente que
me serve, que me acompanha, que me obedeçe silenciosa e que
não se cansa de tudo recomeçar à cada vez que
meus olhos dizem não gostarem do resultado. Da determinação
desta pluma de me seguir nos movimentos os mais variados em busca
da perfeição, de equilíbrio, da harmonia, da
simetria, do que é correto, alinhado, coerente, bonito, ideal,
conceitual, estético, profundo, sensível, legitímo!...
Dando forma por onde ela passa, a tudo o que minha imaginação
concebe; realizando letras, as mais belas para mim...
Eu
pego a pluma, eu escolho um alfabeto, eu carrego a pluma de tinta,
eu sinto a pluma, eu movimento a pluma, eu traço com a pluma,
eu faço circulos com a pluma sobre o suporte, eu olho a espessura
do traço da pluma, eu subo com a pluma, eu desço,
eu traço à direita, eu traço à esquerda,
eu paro, eu continuo, eu retorno em ritmos elegantes, eu imagino,
eu me exprimo, eu danço um balé através dos
traços regulares, eu mudo a cor da tinta, de pluma, de letra,
eu mudo de direção em traços irregulares, em
traços contrários, eu sinto a música invisivel
que a harmonia das letras criam, eu paro, eu relaxo o braço,
eu leio novamente o texto que transcrevo, eu o analiso em silêncio,
eu o compreendo, eu o contesto ou eu lhe dou meu acordo, eu o comparo
com o texto caligrafiado, eu recomeço, eu pego a pluma, eu
invento, eu crio, eu erro, eu paro, eu recomeço, eu paro,
eu repouso outra vez a pluma, eu olho o espaço infinito do
suporte, eu elevo meus olhos, eu contemplo o vazio em torno de mim,
eu penso, eu imagino, eu me transponho a um outro mundo, eu retorno,
eu calculo, eu decido, eu ouso... eu pego a pluma novamente, eu
escolho um alfabeto, eu carrego a pluma de tinta, eu sinto a pluma,
eu olho a espessura do traço da pluma, eu movimento a pluma,
eu traço com a pluma...
Da
Rústica à Batarda... para mim, sentir o movimento
delicado e envolvente da pluma é um momento mágico,
definitivo e único, onde posso expressar e reproduzir com
meu toque pessoal, com liberdade, paixão e afeição,
tudo aquilo que faz parte de minha criatividade.
São
essas algumas das muitas razões de meu trabalho; algumas
das idéias que inspiram sua realização.
|
|